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Fã de peixe

Sou fã de peixe.


E me diferencio do aquarismo. Não de uma forma superficial e moralista repleta de projeções humanas sobre os animais em si. O que me diverge do aquarismo é a essência. Como o próprio nome diz, o aquarismo (principalmente o amador) é colocado como um hobbie em que se preza, em primeira instância, pela beleza do aquário.


E, há de se contemplar: peixes são animais belíssimos e extremamente relaxantes. Podemos passar horas olhando para o aquário e ouvindo o barulho da fonte, facilmente confundida com uma decoração viva e natural.


Minha história com os peixes se iniciou como todas as outras grandes partes de minha vida: com o acaso.


O início foi encantador: uma euforia misturada com sentimento de onipotência... Uma maga com seu caldeirão usando produtos químicos para simular um ambiente natural. Posso dizer que aprendi mais sobre química com a manutenção do aquário do que nas aulas da época de escola.


Apesar da crença popular, peixes são animais incríveis, capazes de reconhecer rostos humanos e constantemente te perseguem nadando na mesma direção que você.


Alguns peixes, quando ganhado a confiança, permitem a aproximação e até o toque. A construção do vínculo é gratificante.


Porém, o mesmo aquário que te faz se sentir uma bruxa poderosa não hesita em te avisar que errasse na dosagem das poções e, por alguma razão do Universo, os níveis da água desandaram.


Foi assim que comecei a perder alguns Kinguios. E foram nos momentos de perda que me percebi diferente do aquarismo.


Não me importava a beleza do aquário, nem o valor investido. Eram as vidas que estavam ali se perdendo. E eu estava desesperada.


Era Anastácia com seu nado brilhante, Lucas, com sua fome insaciável, Luli, tão doce e tímida... Vi, a lenta e amorosa.


Cada perda era uma dor brutal, um sentimento de impotência, castigo divino, de querer brincar de Deus ao tentar criar um ecossistema do zero e tão frágil. Culpa e mais culpa. Porém, ainda tinha peixes ali para cuidar.


Por fim, consegui ajeitar o aquário. E ele ficou lá, um tanque de 1000l para três peixes pequenos. Para mim, era inconcebível a ideia de ter mais peixes.


Rechacei o aquário por alguns bons meses. Era difícil olhar minha turma esvaziada. Até sentir falta dos que ainda estavam vivos e perceber o quão injusta estava sendo com eles.


Passou o tempo e os parametros estavam saudáveis, os animais crescendo e se desenvolvendo, cada vez mais carinhosos e engraçados. Finalmente, senti a vontade de conviver com mais peixes.


E, é nesse cenário em que me torno fã de peixe.


Acredite em mim: eu sempre pego o peixe que está meio borocoxô e pedindo por uma qualidade de vida diferente.


Gostaria de dizer que isso é síndrome de salvadora. Sairia até mais barato... Porém, é pior: é uma necessidade de proporcionar ambientes potencializadores e criativos. A minha necessidade de criar é tão grande que, qualquer possibilidade que tenha de permitir que o outro seja ele e se desenvolva na sua natureza, eu aceito.


E foi assim que chegou a Neide.


Neide é uma peixe papagaio que estava muito triste e pálida. Se, o ser humano fosse mais horizontal nas suas relações, conseguiria enxergar a alma estressada e triste do peixe. A peguei com o intuito de lhe proporcionar uma condição de vida mais peixóloga: num aquário propício para seu tamanho, com temperatura e ph favorável e enriquecimento ambiental. Estava animada em conhecê-la melhor.


Porém, Neide nem tanto. Assim que chegou na sua nova casa, sentia medo, receio e desgosto da mudança. Havia saído te um pequeno aquário para um triplo do tamanho onde poderia nadar com muita facilidade. Ainda assim, estava completamente irritada.


Desde então comecei a passar duas horas por dia sentada ao lado do aquário, tocando no vidro e tentando captar sua atenção.


Neide ficava imóvel, sem comer, apenas me observando.


Como boa Millenial, corri para o Sertralina do peixe: stress guard. Quem sabe assim diminuiria sua ansiedade.


Não obstante, o remédio não faz efeito sem terapia. Então, continuei na minha gincana de vínculo.


Neide passou quatro dias sem comer e minha síndrome de vó estava a beira de um ataque nervoso. Até que, finalmente, sua cor começou a mudar junto com seu apetite.


Neide passou a nadar no aquário inteiro, a me seguir pelos espaços aquáticos tentando não me perder de vista, comendo direto da minha mão.


Neide é um peixe que demora pra comer. Pois devido a mà formação genética da boca só come de grão em grão. Às vezes, fico mais de meia hora alimentando-a, numa conexão cômica exercida por nós duas. Não posso apressá-la, é seu tempo. E não posso me apressar: é meu tempo com ela.


A gratidão dos peixes é infinita. Assim como seu amor.


Neide ainda tem algumas partes pálidas, mas bem menos do que antes. Está mais ativa e claramente mais feliz. Neide precisava de alguém que compreendesse sua natureza e estivesse desposta a oferecer um ambiente propício para se desenvolver.


E assim é a criatividade: a criatividade só se amadurece quando encontramos ambientes propìcios para exercê-la.


Ainda tem gente que acha que peixe não interage e não pensa... Já eu, acho que se pararmos de procurar apenas nossos semelhantes e nos propusemos a compartilhar a vida com seres diferentes, nosso repertório ganha cores novas e poderemos amadurecer muito mais rápido. Aprendemos sobre o tempo, limite e empatia.


Compreendemos a enxergar o mundo com outros olhos, a nos divertir com o encontro de dois, sem exigir que o outro supra nossa carência.


Eu sei, parece estranho, mas é por isso que sou fã de peixes.


Talvez, nos encontramos na estranheza.

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Prazer, a humana.

Olá, meu nome é Marcela Figueiredo, sou artista, autista, psicóloga e arteterapeuta responsável por uma linda - e enorme - família multiespécie. Seja bem-vinde ao nosso mundo.
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